Vera Passos*
A gente tem de morrer tantas vezes nessa vida, que precisamos ir preparando a morte, talvez, definitiva. O nascimento é a primeira dessas mortes, quando deixamos a bolha escurinha, quente e úmida, onde estamos em total sintonia com aquele ser que nos gerou e acolhe em uma simbiose perfeita, do qual extraímos tudo de que necessitamos. O sopro inicial é um grande esforço, mas o fazemos em nome da vida que nos aguarda e das sucessivas mortes que a acompanham. É com tristeza e choro que manifestamos essa morte sempre prematura. Morremos ao sair da infância, o que tem acontecido cada vez mais cedo, devido ao apelo exaustivo da sociedade midiática e consumista, que impõe às crianças necessidades vãs, as tornando adultos mirins para o quê não estão de modo algum preparadas. Assim é que se tornam mães sem sequer terem ensaiado as brincadeiras com suas pequenas bonecas.
Na adolescência, é toda a nossa identidade
que morre e buscamos, desesperados, outra que nos caiba. Rabiscamos assinaturas
possíveis e estilos de vestir e de nos portar em público que nos definam. Ora
nos escondemos, ora nos mostramos escandalosa e agressivamente.
Mais
tarde, em outros rituais como ao entrar para a vida profissional e no casamento,
vivemos diferentes mortes. Fenecemos quando findam os nossos relacionamentos, e
constatamos, que se apagou a chama do que foi uma grande paixão. Quando somos
mães, morremos ao ver sair de nós aqueles seres que mantínhamos seguros dentro
dos nossos corpos e agora se lançam no mundo em suas próprias descobertas e
riscos.
Embora,
ao nascer tivéssemos como destino o envelhecimento e a morte, a constatação do
caminhar para o fim, na imagem nossa de cada dia, é a mais difícil das mortes
enfrentadas. Dela fugimos angustiados! Porém ela teima em se expor nos espelhos
que são os nossos antigos, e agora também velhos, amigos. Enquanto seguimos
nessa trilha misteriosa e tão imprevisível que é a vida, vemos irem-se parentes
e amigos. São muitas, e tantas, essas mortes... Às vezes a vida nos prende em
armadilhas traiçoeiras a ponto de querermos, voluntária e estranhamente, morrer
de fato e chegarmos a atentar contra a própria existência. Em estado de depressão, nos sabotamos e
matamos vários dos nossos dias. É Tanatos que nos faz navegar pelo
inconsciente, embora a vida seja cheia de possibilidades, tenhamos diversos
talentos e, lá fora, brilhe um sol fulgurante sob mar azul sem fim.
Enfim,
poderia continuar discorrendo sobre uma infinidade de mortes. Mas por me sentir
muito viva agora, planejo a cerimônia que registrará a minha morte. Não quero
carpideiras, mas os sons da leve música de algum choro sincero dos que sentirão
a minha falta. O ritual do velório é muito sombrio, embora certo luto seja
necessário para que os meus filhos reflitam o que significa para cada um deles
a perda de sua mãe. Para internalizarem como querem guardar essa memória. Em um
gesto solidário, ecológico e de celebração à vida, já doei os meus órgãos. Que
minhas cinzas sejam jogadas em campo florido, enquanto o ar conduz belos poemas
e cantos sobre a arte de viver. Viver em plenitude, saboreando os bons
momentos, aprendendo com os maus e partilhando cada um deles.
E
que venham outras vidas e suas respectivas mortes. Se elas existirem!
*Professora
de matemática e artesã, escreve no verapassos.blogspot.com
SUGESTÕES INDISPENSÁVEIS:
"DESPEDIDA", um poema de Ferreira Gullar:
"AS CORES DE ABRIL", uma música de Vinícius e Toquinho:
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