PASSOS COTIDIANOS- Crônicas (Dos Sabonetes Araxá às Baterias Moura, Aos Nossos Anjos da Guarda.),(Aula no Natal) e (Holloween no Brasil - Conhecer, sim. Imitar, não.)

DOS SABONETES ARAXÁ ÀS BATERIAS MOURA



Desde 1931, quando um anúncio inspirou a Balada das Três Mulheres do Sabonete Araxá de Manuel Bandeira até os cartazes de propaganda das baterias Moura que atualmente tanto têm me incomodado ao trafegar pelas ruas de Salvador, muita coisa se transformou na vida das mulheres brasileiras. Na propaganda, a mudança foi para pior. Nela, as mulheres avançaram nos espaços profissionais como simples peças decorativas.

No Brasil atual, ainda há um número significativo de dona de casa. Por mais que isso demonstre a inexistência de oportunidades plenas delas se tornarem independentes financeiramente e se realizarem enquanto profissionais, pode justificar que estejam sempre presentes a anunciar detergentes, margarinas, desinfetantes, inseticidas, amaciantes de roupa, óleos de cozinha, temperos feitos com amor etc.

Às mulheres, muito mais do que aos homens, são exigidos cuidados constantes com a beleza e a aparência física. Deriva daí o uso de sua imagem em anúncios de shampoo, cremes hidratantes e protetores solares, embora os homens não lavem seus cabelos apenas com água corrente, suas peles estejam sujeitas a ressecamento e a exposição excessiva aos raios ultravioletas e infravermelhos também possa lhes causar câncer.

Há ainda uma série de peças publicitárias em que mulheres com alegria contagiante negam a própria identidade. São anúncios de produtos para domar cabelos cacheados e rebeldes, tratamentos definitivos para alisar cabelos crespos ou tinturas para transformar, em instantes, cabelos negros em loiros radiantes.

Quando o produto é um carro – artigo que historicamente simboliza masculinidade - o motorista é possuidor não só do veículo mas da mulher no banco ao lado ou sobre o capô a tornar a cena ainda mais idílica e sensual.

São várias as propagandas em que as mulheres têm um papel que poderia ser substituído por uma prateleira, um armário, uma cadeira ou até um prego na parede. Elas não falam, não avaliam o produto, possivelmente nem o conhecem ou usam. Apenas o seguram e vendem o seu corpo para embelezar a cena. O cartaz de propaganda das Baterias Mouras expõe de modo exemplar o uso da mulher como objeto de adorno. Nela, Emerson Fittipaldi, a autoridade na área automobilista, aparece dando credibilidade à marca, enquanto Maria Fernanda Cândido, muito linda em um vestido justo e prateado, esboçando seu belo sorriso, segura um exemplar da bateria. Os atores, e principalmente, as atrizes, não pensam no sentido das escolhas que fazem? Não avaliam a repercussão das mensagens que decidem associar a suas imagens? É sempre um acordo em que contam apenas o tempo de gravação e o valor pago pelo serviço? Quero crer que não seja sempre assim, prefiro acreditar que nos tenha servido de lição a propaganda antiética que cristalizou a famigerada “Lei do Gerson”.


  AULA NO NATAL
                                                                                                                          Vera Passos
 
   Não ensino mais Matemática, mas dei um pouco de aula a um ambulante que vendia tesourinhas em plena Av. 7 de Setembro, na  antevéspera de Natal. Minha filha Liza, de 11 anos, cansada do tumulto, reclamava impaciente. Eu não dava a mínima importância às suas queixas. Não era essa a matéria em que ficara em recuperação? Afinal, em casa de ferreiro, o espeto não é de pau? Eu insistia em retomar a conta que o meu aluno tanta dificuldade tinha em concluir de modo acertado. Eram 8 tesouras a R$0,70  cada. Ele começou bem: duas custariam R$1,40.  E ainda agrupou:  4 seriam R$1,40 + R$1,40! Dariam? 2,50! Volta tudo ao começo! Digo-lhe, contrariando Liza, que não tenho pressa, que aguardarei até que chegue ao resultado e tenha a certeza de que estou lhe pagando o valor devido. E foram vários os recomeços, seguidos de outros tantos protestos chorosos. Foi um fracasso a minha aula. A agitação do ambiente e impaciência da minha acompanhante não ajudaram. Para tranqüilizá-lo de que não o estava trapaceando, paguei um pouco mais. Mostrei-lhe que seria mais fácil calcular usando apenas a unidade. Saberia decorada a tabuada de multiplicar por 7? Como uma das tesouras estava sem o estojo, eu comprei apenas 7. Então bastava fazer 7X7=49, logo 70 x 7 = 490. Assim, R$ 0,70 x 7 = R$ 4,90! Depois de muitos conselhos de que precisava estudar, para que não fosse enganado em sua profissão, saí triste e pensando no quanto é desigual esse nosso Brasil.
Tive o prazer de partilhar a Ceia de Natal de nossa casa, com uma ex-colega de Cálculo III na UFBa. Ela estudava Física, eu, Matemática. Fernanda, sua filha, fez um relato que me remeteu à vida de professora. Disse ter feito um curso de Turismo que foi pura Administração. Fizera todo o curso protestando por estudar tantos conteúdos de Matemática e agora, trabalhando em Hotelaria, constatava, surpresa, o quanto precisava de todo aquele conhecimento.
Aproveito para detonar dois grandes mitos. Apesar de se propalar por aí, não é privilégio da disciplina Matemática  desenvolver o raciocínio lógico! Outras disciplinas o fazem, dependendo da forma como são ensinadas.  A Matemática é, sim, uma ciência exata, mas é preciso ensinar que 2 + 2 não é sempre 4! Saindo do tão conhecido sistema decimal, é simples mostrar que no sistema de numeração de base 3, 2 + 2 é igual a 11!  Não há ciência em que não caiba a re-la-ti-vi-da-de!
   Enquanto aluna, por muito tempo, português e inglês eram as minhas disciplinas prediletas. Mais tarde, sempre utilizei textos da literatura em sala de aula. Um poema de Millôr Fernandes de título Poesia Matemática; um texto em que Jô Soares ironiza as manipulações sobre os índices da inflação nos anos 80; uma poesia unindo Matemática ao Amor no dia dos namorados; um conto de Arthur C. Clarke etc. No entanto,  de todos eles, o que resume de modo mais sintético a explicação para aqueles que me perguntavam “Professora, para quê tenho que estudar isso?”, ainda destaco a frase do poeta do Mississipi Mark Twain: “Figures don´t lie, but liars make figures” (“Os números não mentem, mas os mentirosos produzem números”). Se não houvesse outro motivo importante para aprender matemática, só este  justificaria todo esforço e merecido prazer: ficar esperto, não se deixar enganar. Seja nos índices da inflação, seja nas pesquisas eleitorais, na divulgação do PIB ao final de cada ano ou na venda de simples tesourinhas...

P.S.: No ano de 2009, entre 1519 crônicas  inscritas, "AULA NO NATAL" foi uma das 100 selecionados para publicação na Coletânia de título "Balões Coloridos", publicada pela Via Literária em Porto Seguro.



AOS NOSSOS ANJOS DA GUARDA




Foi uma antiga amiga quem ensinou a Oração do Anjo da Guarda a meu filho. Fiquei muito feliz ao vê-lo acrescentar depois do “Amém”, as palavras “OHM” e “PAZ”. Sempre temi ficar aprisionada em uma religião. Por pensar deste modo, optei por fazer uma bênção ecumênica ao invés batizá-lo na igreja católica como aconteceu comigo e com seu pai. Nossa união, ao contrário, se deu em uma bela e inesperada cerimônia budista. Nossos filhos, se desejarem, adultos e em busca de seus propósitos de vida, poderão fazer a opção religiosa que melhor lhes convier.
Quando nasceu a nossa caçula, fiz pequenas modificações na Oração e sugeri a ele que passasse a rezar pela irmãzinha, que  ainda não falava. Então passamos a rezar: “Santo anjo do Senhor, meu zeloso guardador, se a ti nos confiou a piedade divina, sempre nos rege, nos protege, nos guarda e nos ilumina. AMÉM. OHM. PAZ.”
Faz tempo que ela aprendeu a falar, mas continuamos a rezar dessa forma. Afinal, que sentido faz se o anjo só zela por nós individualmente? Será possível tal felicidade?
Peço ao meu anjo da guarda que ande de mãos dadas com os outros anjos e arcanjos, para que regem, guardem e iluminem, incessantemente, todos os seus protegidos, para que tenhamos, enfim, não a paz celestial, mas a tal almejada PAZ sobre a Terra.
QUE ASSIM SEJA!

Salvador, outubro de 2005




HOLLOWEEN NO BRASIL - Conhecer, sim. Imitar, não.








Na entrada do supermercado Bom Preço no bairro do Canela, existia  uma  loja  com  um  pequeno  letreiro onde estava escrito SEW & HEEL (QUIK). Achei curioso encontrar na Bahia uma loja com anúncio exclusivamente em Inglês e me perguntava quem procuraria os seus serviços, sendo que a grande maioria da população brasileira mal sabe ler. Depois de algum tempo, voltei ao local e vi que a loja havia deixado de existir e seu letreiro fora substituído por dois outros grandes que continham a expressão: SAPATARIA DO FUTURO. É bom explicar que o verbo TO SEW significa costurar, HEEL significa salto e QUICK, observem bem, não é QUIK, pretendia expressar que o serviço era rápido. Eis um letreiro cuja mensagem não cumpria o seu objetivo de informar e persuadir.


Sempre conto essa pequena história e pergunto aos meus alunos se eles procurariam a loja, ao que me respondem que não, por não saberem de que se trata. Observem que eu faço a pergunta para alunos do Ensino Médio ou do Curso Profissionalizante do CEFET-Ba. Imaginem o que significa tal letreiro para a grande parte da população baiana, que não teve as oportunidades educativas desses alunos. Esse é um bom exemplo de uso da língua estrangeira como elemento de exclusão social. Como prof. Pasquale Neto, concordo que palavras em idioma estrangeiro devem ser usadas, quando não há equivalente na língua portuguesa. Nossa língua é um dos elementos das nossas identidades pessoais, da identidade do nosso país, da nossa cultura e nossos valores. Não se trata aqui de defender a proibição do uso de estrangeirismos, mas sim de evitá-los sempre que possível, visando melhorar a qualidade da nossa comunicação e valorizar a nossa língua e o que ela representa.


Ainda exemplificando o que disse anteriormente, moro num condomínio chamado Côte D´Azur, o que me causa certo embaraço. Quando preciso ditar o meu endereço para alguém, não sei como fazê-lo, pois as pessoas não entendem se pronuncio como o idioma francês manda. Então eu o pronuncio em francês, abrasileiro o nome, soletro, dou o seu significado e ainda me desculpo. Pode? Meu trabalho seria extremamente mais simples se morasse no condomínio Costa Azul, não acham?


Como professora de Inglês, compreendo que tenho um papel muito importante na contribuição do entendimento do mundo globalizado, onde o inglês é língua de uso corrente, embora não considere ser de minha responsabilidade a estimulação do seu uso em situações desnecessária e até prejudiciais. Do mesmo modo, distingo bastante a necessidade de conhecimento de línguas estrangeiras daquela de importação de vocabulário e valores culturais estrangeiros. Porque eu leciono inglês, não vou “americanizar” os meus alunos. Pelo contrário, sempre lhes propicio leituras e discussões que permitam uma análise crítica da realidade da superpotência do mundo atual, a exemplo do livro “STUPID WHITE MAN” de Michael Moore, um dos críticos atuais mais ferozes do estilo de vida americano (American way of life), cujos filmes Bowling for Columbine (Tiros em Columbine) e Fahrenheit 9/11 foram bastante premiados nos últimos anos.


Por tudo dito anteriormente, nunca promovi ou estimulei as iniciativas de halloween em nenhuma das escolas em que lecionei. Para aqueles que não tiveram a oportunidade de conhecer, trata-se da celebração nos EUA do dia das bruxas na véspera do Dia de Todos os Santos, no qual enfeitam-se as casas com abóboras ocas e crianças vestidas de bruxas ou outras figuras assustadoras, visitam as casas pedindo doces e ameaçando fazerem malvadezas caso não sejam atendidas. Para as últimas semanas de outubro, costumo programar a leitura e discussão em aula do ensaio de Roberto Pompeu de Toledo na revista Veja de 06/11/96, onde o tema é belissimamente abordado. “...festejar o halloween no Brasil, é coisa de basbaques. Assim como saborear “vanilla”, vender “off” e despachar “delivery”. É coisa de imitadores. Ainda se fosse para imitar o que a civilização americana tem de fundamental, como o respeito à lei e à ética do trabalho, vá lá.”, diz ele. Temos uma cultura muito rica e pouco valorizada e não compreendo o sentido educativo de apenas reproduzir um evento cultural de outro país. Além do que, não se fala inglês só nos Estados Unidos, quase todo o sul da África fala inglês e, considerando a origem dos nossos ancestrais, seria mais sensato buscarmos conhecer, não imitar, as expressões culturais desse países. Querem fazer um Festival de Música (Song Fest), um ciclo de filmes instigantes em língua inglesa, uma festa com reisado, capoeira e forró? Contem comigo. Mas se a proposta é de halloween, como dizem os estudantes no nosso português da oralidade: tô fora!

Salvador, novembro de 2005