segunda-feira, 19 de outubro de 2020

OS LEGADOS



                                                                                                   SAIBA

"Saiba,
Todo mundo teve medo
Mesmo que seja segredo
Nietzsche e Simone de Beauvoir
Fernandinho Beira-Mar



Saiba,
Todo mundo vai morrer
Presidente, general ou rei
Anglo-saxão ou muçulmano
Todo e qualquer ser humano"

Trecho de canção de Arnaldo Antunes

 


Um dito popular afirma que para marcar a nossa existência devemos plantar um árvore, escrever um livro e ter um filho. Questiono a afirmação triplamente. 

O nível de destruição a que chegamos da flora planetária exige que cada um de nós faça muito mais do que plantar uma árvore em vida;

A opção por ter filhos, que cabe igualmente a homens e mulheres, decisão muito profunda e pessoal, deve ir muito além da necessidade de registrarmos a nossa passagem no mundo. Para ela é preciso ter coragem, muita disponibilidade e esperança de que eles consigam superar as mazelas da herança histórica que lhes deixamos. Segundo Harary, o surgimento do Homo Sapiens se deu há 200 mil anos. A escrita sistematizada, por seu turno, é um fenômeno extremamente recente, pois só foi inventada com os sumérios em 3500 aC. É notório que alguns indivíduos deixaram legados fundamentais, embora eles não tenham sido registrados na tradição escrita e várias culturas, como a da população cigana, são fundamentalmente ágrafas. A indubitável herança cultural dos nossos povos originários jamais poderia ser diminuída pelo simples fato de que em alguns casos não há registros escritos. Na esfera individual, a história da humanidade está repleta de grandes mestres espirituais como Maomé, Buda e Cristo que só nos deixaram ensinamentos orais.

É comum ouvirmos: “Sua vida daria um livro”! De minha parte, achava que a minha vida daria uma boa novela mexicana, no sentido pejorativo do termo! Na verdade, a pergunta é: há vida que não dê um livro? É claro que há pessoas cujos feitos mudaram o rumo da humanidade para o bem ou para o mal. Há na história vários casos de seres que foram fonte de inspiração para muitos outros, mas acredito que toda vida vale uma narrativa pelas características pessoais de cada indivíduo inserido nas peculiaridades de sua época, que, em interação dialética, determinaram as singularidades de sua trajetória e a contribuição às gerações futuras. Nem que elas possam ser tomadas como contraexemplos.

O que há de mais importante na narrativa do “PROSAC – Letras em cápsulas” livro que acabo de lançar, não são os fatos particulares de minha vida, mas o que há de emblemático na minha forma de lidar com o adoecimento psíquico: sem dissimulações, assumindo combater os preconceitos contra as pessoas “anormais” e tentando contribuir minimamente para que, no limitado alcance das minhas ações, compreendam melhor a si e aos outros. Não tenho fórmulas, não sou uma especialista em saúde mental, nem possuo experiência exemplar. Conduzi a minha vida com os acertos e equívocos que fui capaz de realizar, dentro das limitações que estavam fora e dentro de mim. Apenas dou o meu depoimento. Deixei lacunas, fui traída pela memória e cometi equívocos, mas esse é o olhar que consigo ter hoje sobre o vivido.  Apenas isso. Gostaria de poder ajudar outros portadores de transtornos a se apossarem de suas narrativas, ganhando consciência da riqueza de suas trajetórias. Tudo isso.

sexta-feira, 9 de outubro de 2020

JULHO 2020

 


JULHO
                      Vera Passos

O calendário perdeu o juízo.
É sempre um domingo
Sem praia nem futebol.
As canetas já não 
Sangram as agendas
E a sexta-feira reivindica
O privilégio da cerveja gelada.
Os dias ganharam a alforria.
Não conquistaram a liberdade.