domingo, 29 de agosto de 2010

NICA, DIMINUTIVO DE MOEDA PRECIOSA


Por razões quase óbvias, não sei ser uma mãe padrão. Sou totalmente diferente: pari dois filhos, sigo zelando por dezenas de crianças de diferentes idades, eduquei centenas de jovens e continuo desejando levar para casa outros nas esquinas da vida. Comecei a ser mãe logo cedo e isso faz com que a diferença de idade entre esses primeiros filhos e eu seja muito pequena. Em um dos casos ela é de apenas meses, no mais simbólico e religioso deles é de três anos – isso se deu ao batizar uma prima, quando sequer era capaz de carregá-la no colo. Adolescente, tornei-me madrinha de outro primo, o qual é hoje pai de dois filhos. Ensaiei os meus primeiros gestos maternais, enquanto vivia na casa da minha própria mãe e senti que uma menina magrinha, de cabelos escorridos e olhos pedintes, precisava de mais do que as importantes coisas que sua tia lhe assegurava: escola, refeições em horários certos, cuidados com a higiene pessoal, tratamento médico e dentário, vestidos bordados e companhias de sua idade para brincar. Ela necessitava de alguém para, ao ensaboar o seu corpo enquanto lhe dava banho, dar especial atenção às suas pequenas costelas à mostra no tórax e insistir repetidas vezes em prender seus cabelos lisos com franjinha sobre a testa. De uma pessoa para lhe perfumar e segurar sua mãozinha para sairem juntas a um passeio que apenas tivesse como objetivo saborear o acarajé vendido na esquina do Colégio Santanópolis. Queria alguém que risse ao notar o paradóxo de sua voz aguda e infantil, cantando em rítmo acelerado os versos da música e protesto do Maluco Beleza: “eu que não me sento no trono de um apartamento, com a boca escancarada cheia de dentes, esperando a morte chegaaaar...”

Mais tarde, provavelmente buscando seguir o meu exemplo, ela fez faculdade de Matemática. É tranquilizador saber que essa escolha lhe trouxe segurança profissional e lhe proporcionou grandes manifestações de afeto de seus alunos e colegas. Com a maturidade, além dos vários tecidos adiposos que arredondaram ainda mais as nossas curvas acentuadas, fomos aprendendo a controlar melhor nosso temperamento rebelde, agressividade desmedida e aquela antiga sensação de crianças esquecidas pelos pais na porta da escola. Como todas as mães, tenho minhas queixas em relação a essa filha que não me visita tanto como eu gostaria, se esquece do dia do meu aniversário e ainda continua me fazendo esperar por ela em ocasiões em que seria importante tê-la por perto. Apesar de tudo, como pequena moeda brilhante, ela acaba arrumando um jeito de se fazer presente e devo dizer que dentre os vários filhos que andei amealhando, a sua adoção teve um balanço extremamente positivo em termos de identificação, alegria e carinho mútuo.

domingo, 22 de agosto de 2010

DE SECAS, ORQUÍDEAS E ROSAS AO VENTO

"Minha infância de menina deu-me duas coisas que parecem negativas: silêncio e solidão. Essa foi sempre a área da minha vida. Área mágica onde os caleidoscópios inventaram fabulosos mundos geométricos, onde os relógios revelaram o segredo do seu mecanismo e as bonecas o jogo do seu olhar. Mais tarde, foi nessa área que os livros se abriram e deixaram sair suas realidades em combinação tão harmoniosa que até hoje não compreendo como se possa estabelecer uma separação entre esses dois tempo de vida, unidos como os fios de um pano."
Cecília Meireles

O fio que liga a infância à idade adulta pode trazer marcas tão profundas de sofrimento que parece impossível ver além de seu vermelho sangue encarnado, do seu gosto amargo de fel. Algumas pessoas se desdobram em lágrimas para molhar as rachaduras secas do solo que cobriu o seu pequeno coração mal regado. Penso que por muito tempo escolhi ser uma delas...
MAR ADENTRO
***************Elisa Lucinda
*
É preciso chorar.

As lágrimas são a chuva da gente,
nuvens do nosso tempo íntimo precisam desabar.
*

É preciso chorar, lágrimas são os rios do ser,
as cachoeiras da gente,
mudam nosso tempo simples, atualizam o nosso mar.

*
É preciso chorar,
é preciso à natureza copiar,
é preciso aliviar e molhar a seca do coração.
*
Se não chover vira sertão,
morre homem,
morre gado,
morre plantação.

*

Mas há outras que têm o dom de, na alquimia de uma cozinha interior, transformar sabores e cores e, em passes de mágica, fazer surgir dessa mistura delicioso prato de saborosa torta, cujo invólucro é uma massa constituida de poderosa força com recheio de fé e suave cobertura de alegria, com aroma especial capaz de contagiar até as mais inapetentes criaturas. Dedico essa postagem a uma amiga, Ana, que tem sobrenome de personagem de famoso romance de Raquel de Queiroz e à minha irmã que, tendo vivido a mesma realidade sertaneja que eu, também soube preparar alimento e não água.


4o. MOTIVO DA ROSA
************Cecília Meireles
*
Não te aflijas com a pétala que voa:
também é ser, deixar de ser assim.

Rosas verá, só de cinzas franzida,
mortas, intactas pelo teu jardim.

Eu deixo aroma até nos meus espinhos
ao longe, o vento vai falando de mim.

E por perder-me é que vão me lembrando,
por desfolhar-me é que não tenho fim.

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

"BAUANI" OU COMMENT ALLEZ VOUS?


No final da tarde de ontem, fui visitar a Feira Étnica que compõe o I Seminário Nacional sobre Turismo Étnico-Afro, em seu primeiro dia, no Centro de Convenções da Bahia. Logo de cara, senti falta da programação do Seminário, porque um evento desse tripo não pode se limitar a expor produtos, deve ter como foco principal o apelo dos participantes a que participem dos debates para a valorização da cultura afro e a quebra dos preconceitos nessa terra, onde há o maior percentual de negros do Brasil. O pouco tempo que dispunha para me deleitar com a Feira me deixava um ansiosa: cerca de hora e meia. Fui deixada de carona por uma prima e seria resgatada pelo companheiro para a apresentação teatral do nosso filho em sua escola. Um borburinho de baianas chamou a minha atenção logo na entrada e eu me enfiei entre elas para ver do que se tratava, talvez motiva pela fome, na esperança de encontrar um tabuleiro de acarajé no seu centro: miragem de peregrino em meio a travessia desértica. Percebendo-me como estranha naquele ninho, disfarcei perguntando a uma das baianas mais jovens em que andar estava acontecendo a feira. Ela respondeu com sorriso largo: no 3o.! Agradeci escabriada e saí. Outro sorriso com dentes amplos e alvos em uma figura feminina que usava um torço na cabeça me recepcionou à entrada da Feira. Meu desejo de fazer um penteado afro nos cabelos quase se materializou logo na primeira barraca, mas, infelizmente, a artista responsável pelos penteados ainda estava se penteando e me pediu que retornasse mais tarde. Segui até a barraca em frente onde duas jovens simpaticíssimas me deram um livreto de título "Uma História de Amor com o Samba" e o cd Alvorada. Em seguida, tive que decidir entre uma variedade de belos e coloridos colares expostos pela nigeriana Bolaji. Foi ela quem me ensinou o termo "Bouani" em iorubá. Também trocamos as traduções dos nossos nomes. Com orgulho lhe disse que o meu deriva do latim e significa "verdade", cuja tradução é "verité en français". Devo confessar a vocês que a poesia do significado do seu nome me deixou um rago de inveja: "flor que traz alegria" - não recordo bem (seria um ato falho?). No estande da NAFRO PM perguntei ao expositor, quais eram as religiões de matriz Africana. Como supunha, ele me disse serem apenas o Candomblé e a Umbanda. Eu lhe perguntei se, só na África, havia outras religiões além dessas que justificasse o termo utilizado pela Polícia Militar da Bahia. Foi então que fme ensinou algo muito importante: cada reino, tribo ou grupo étnico africano, cultuava um Deus, um Orixá. O processo de escravidão, ao trazer pessoas de diferentes regiões do continente, fez com que aqui fosse gerada essa nova religiosidade politeísta, que no Candomblé reune: Iemanjá, Oxum, Ogum, Nanã, Iansã, Oxalá, Xangô e Oxóssi (o meu protetor). Isso significa que, durante o processo perverso de escravidão, os negros trazidos da África uniram-se para transformar o seu vínculo religioso incorporando entidades de vários grupos étnicos e ainda disfarçaram essa fé original, através do sincretismo religioso para poder preservar os laços com o Divino e lhes dar sustentação naquele momento histórico de extrema dificuldade. Essa é uma história muito bela de força na fé e resistência na adversidade que despertou o meu interesse em iniciar um estudo sobre o tema. Ele me sugeriu, além obviamente do CEAFRO (UFBA), a Casa do Benin, Casa de Angola e Casa da Nigéria como possíveis locais para cursos de aprofundamento. Prossegui a minha caminhada, agradecida.




Comprei dois brincos de Manuela que criou a um brinco com a bonequinha negra "Abayomi - encontro feliz" confeccionada em contas e com uma saia de casca de licuri. Manuela é aluna do curso de História da UFBa e me deixou muito feliz pela forma positiva como reagiu à minha ladainha de repulsa aos sacos plástico que vinha recebendo de cada uma das barracas. Ela me disse que no dia seguinte estaria com um saco de papel reciclado para embalar seus brincos, chaveiros e colares com a pequena Abayomi. Trocamos e-mails e eu fiquei de retornar para comprar outras peças. Como supunha, meu marido chegou sem que eu tivesse visitado todos os stands. Sentindo que o tempo passava rápido, não tomei o banho de folhas oferecido no Palácio de Oxossi, não pude apreciar os tecidos, blusas e vestidos em liquidação na Didara de Goya Lopes (quem sabe desta vez poderia comprar mais uma de suas peças?) e principalmente, saí com maior fome do que entrei mesmo tendo visto as barracas com comidinhas deliciosas como o beiju feito na hora que me deu água na boca!

Em meu percurso passei por vários outros locais como a Associação Protetora dos Desvalidos -SPD, a Arte´s Campemêlo, o Projeto Didá Alamojú II - Escola da Sabedoria, conheci e comprei o cd do artista de blues, Jairo Monteiro ,de título "Ouça Alto ". Recebi o catálogo produzido pelo SEBRAE sobre Economia Criativa, encomendei uma bata com uma artesã muito simpática, cujo contato perdi. Mas de todos os inúmeros encontros que tive, preciso destacar dois deles: o primeiro foi com uma pessoa que visitou a minha casa há cerca de 6 anos. Estivemos juntas apenas uma vez, mas como sou boa fisionomista, eu a reconheci. Ela estava expondo um trabalho muito interessante de reaproveitamento de vidro. A segunda surpresa foi encontrar Emília Matos. Já havia comprado suas peças nas feiras do Instituto Mauá. Emília trabalha com peças em tecido de muita criatividade e bom acabamento. Ela também me reconheceu e teve até memória das últimas peças que comprei em sua mão. Como estou fazendo um curso de economia solidária e também sou artesã, estamos aventando a possibilidade de nos unir em uma associação.


Oxalá saibamos usar a sabedoria e inteligência e criatividade expressa pelos nossos ancestrais negros, transformando as dificuldades em originais possibilidades!

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

FLOR AMOROSA


BOM DIA, FLOR AMOROSA. ONTEM FOI O SEU DIA!


Queria poder enviar, em todas as manhãs deste ano que se inicia, 50 exemplares de delicadas orquídeas imagéticas (como estas por mim colhidas) só para ELA, a leonina magestosa e guerreira, porém doce e generosa, que nasceu do mesmo útero que eu.*

*
Meu desejo é que o perfume dessas flores tenham a sutileza e a persistência para atravessar o Atlântico, pedir desculpas pelos nossos ancestrais nas proximidades da África e adentrar os solos lusitanos de modo muito leve e humilde. Não para dominar terras, apenas como conquistador de corações que estão ligados pelos laços do Incognossível, daquilo que nos permeia, dá sentido e substrato. Do que vem da Energia que faz de cada ato, uma matéria para novas descobertas e aventuras nessa viagem singular que é a vida.
*
**
PARABÉNS, MANA. ONTEM, HOJE E SEMPRE!

domingo, 1 de agosto de 2010

DOIS CONTERRÂNEOS


Como nos elos de uma corrente de papel de seda junina, também na vida os fatos vão se unindo em uma cadeia colorida. Vivi minha infância em uma rua com o nome do poeta dos escravos, que fica próximo ao antigo Museu Regional de Feira de Santana. Nele minha mãe adquiriu um quadro de Juraci Dórea. O sertão é o foco de sua temática e, há dois anos, quando recebi uma encomenda de 10 camisas com estampas artesanais, quis usar como inspiração as figuras dos quadros dele. Pensei em lhe pedir autorização, em lhe mostrar as blusas como uma homenagem ao seu belíssimo trabalho, mas não tinha seu contato. Há cerca de um ano, a convite da ONG Cipó Comunicações Interativas fui com Jina Carmen e a responsável pela Agência do Sertão, Sarah Carneiro, apresentar a poesia "Lua Nova Demais*" no Clube de Dirigentes Logistas em um evento de combate ao trabalho infantil. Só então. eu vi a cabra, o peixe, a lampião, o peixe e as casinhas que haviam sido transferidos através de linha e agulha dos 2 painéis originais de sua autoria. Meses depois, pesquisando baianos para compor o recital "Canto Quase Gregoriano", descubro surpresa que Juraci também é poeta. Como nao encontrei seus livros, pesquisei na net algumas de suas poesias e as levei para seleção nos ensaios da Escola Lucinda de Poesia Viva.
-
MÓBILE
......... ........Juraci Dórea
...
TANTA VIDA
E UMA CANCELA A BATER
DISTANTE.
-
AH, TANTA VIDA
E ESTE SILÊNCIO A MUTILAR
A NOITE.
-
TANTOS SONHOS
E UMA FACA A NOS CERCAR
NO PÁTIO.MÓBIL


No último
Arraiá Culturá do IFBA, organizei um concurso de quadras juninas. Para ilustrar as quadras que exporia como modelos, incentivando os estudantes a se increverem, decidi colocar desenhos do pintor. Ao buscar imagens, li que Carlos Pitta lhe havia dedicado um disco. Julgando serem poemas musicados, perguntei a Carlos Pitta que me disse ter apenas dedicado o cd ao amigo e ainda me forneceu o telefone de Dórea, dando-me a chance de falar com o homenageado, de descobrir que é amigo de uma prima minha, Iara Cunha, de lhe enviar o brinde da barraca e ainda ter o contato para uma possível entrevista para a Rádio IFBA.
**
-***Êta, corrente bonita e comprida!


* No youtube é possível ouvir o poema na voz de sua autora.

P.S.: Para quem curte um bom forró, segue o link Carlos Pitta. No meu São João, a belíssima gravação de "Guabiraba" é como pamonha, não pode faltar: www.myspace.com/carlospittaforro
Vale lembrar que ás 20h do dia 26/08, Pitta estará apresentando um Pocket Show (acústico), resultado de uma apresentação em Montreaux, no CUCA da UEFS.
**