PASSOS CURTOS - Contos



 "ELE IA SE CASAR!" foi um dos 100 minicontos selecionados entre os 3417 inscritos no Concurso 2009 da Via Literária.

ELE IA SE CASAR!
                                               Vera Passos

     Durante os dias úteis, namorávamos por correio, não tínhamos e-mail.  Nos fins de semana, nosso amor era presencial e quente. Eu morava Salvador, ele no interior. Ele era o poeta, o pintor, o tradutor. Eu, apenas a admiradora, sua musa inspiradora. Chegava a receber duas cartas de uma só vez. Ele não se preocupava com o papel das mensagens, podia ser um envelope pardo de pão, um recorte de revista antiga com alteração pessoal ou um papel velho e amassado. Não importava o meio, apenas a intensa, criativa e apaixonada mensagem. 

     Um dia, recebi surpresa, um cartão em papel couché perfilado e de ótima qualidade. Nele, havia o desenho de um ladrão mascarado que em uma poesia ameaçava invadir o meu apartamento e roubar, definitivamente, o meu coração. Adorei o conteúdo e o analisei o papel... Na extremidade da impressão no seu verso, estavam os nomes de seus pais convidando para o casamento dele, em uma data já passada. O endereço e o nome da sua cidade não me deixaram dúvidas. Ele esteve pronto para se casar e desistiu depois de impressos e, talvez, distribuídos os convites. Se havia escondido o fato, em uma relação sem segredos, deduzi facilmente: foi algo muito sério, deve ser doloroso tocar no assunto e, talvez, ainda goste da ex-noiva. Mas quem é ela, afinal? Li que também morava na capital.  Em um bairro vizinho. E seu telefone estava registrado ali. Não resisti, liguei: - Elisiária está? - É ela, respondeu uma voz amena. Bati o fone, nervosa.  Então ela ainda morava por perto? Poderia ter se mudado para outro estado, outro continente. Mas não, estava bem próxima de nós. Dele! 

     Lembro-me bem. Era uma sexta-feira e ele chegaria no dia seguinte. Como de hábito, visitei uma amiga de infância e segredei tudo a ela e seu marido. “Logo comigo. Eu que não dava certo com os homens e estava tão feliz com esse recente namoro!” Eles me pediram calma. Que aguardasse a chegada dele e esclarecesse tudo. Não haveria de ser nada, disseram.
  
     Mais tarde, ao entrar em casa, vi que a secretária eletrônica registrava uma ligação. A voz era enfática e desafiadora: “Vera, aqui é Elisiária, me ligue!” Desespero total tomou conta de mim. Deus do céu! Ela descobrira que eu havia lhe ligado. Agora teria um pretexto para se aproximar dele: dizer-lhe que a importunei, bisbilhotando a sua vida. Ele não me perdoaria por intromissão em assunto tão velado, eles se encontrariam, sem resistir ao apelo do passado, reatariam a relação e, quem sabe, até se concretizasse o enlace. Fiquei desolada!

     Minutos depois, tomada por um pouco de lucidez, me perguntei: como ela descobriu o meu número de telefone (há 22 anos, identificadores de chamada só nos filmes de detetive, em Hollywood)? Mais tranquila, liguei para o casal de amigos. Atenderam a chamada às gargalhadas. Divertiam-se imensamente com o meu desespero amoroso. 

     No dia seguinte, logo que o trouxe do terminal rodoviário, peguei o cartão, lhe mostrei seu nome no convite e perguntei o que significava tudo aquilo. Ele explicou inocente, quase sorrindo, ser uma sobra do convite de casamento da sua irmã. Nós a chamávamos pelo apelido, mas aquele era o seu nome de batismo. Por fim, me lembrou que ele e seu cunhado eram homônimos.

     Hoje, se me perguntam como não enxerguei que os nomes dos seus pais estavam sobre o da noiva, tenho uma resposta óbvia, mas verdadeira como o meu próprio nome: apaixonados, nos foge a razão, somos cegos de olhos, mente e coração!