quinta-feira, 16 de outubro de 2025

ESCAMAS QUEBRARAM AS MINHAS VIDRAÇAS

"Eu sou trovão, Tu tempestade, Entre nós dois: Pura eletricidade”.
Um peixe atravessou a janela da minha casa. Ela estava fechada, embora sua cortina azul vibrante anunciasse, de modo não muito efusivo ou confiante, que havia espaço na antesala do meu peito. Acho que sequer eu sabia: ela estava plena de poltronas reclináveis, tinha um sofá de quatro lugares que se abria para acolher um tipo de casal que, como disse Drummond, brinca e namora a qualquer hora do dia. Também jazia, no canto esquerdo, um almofadão recheado com flocos de isopor, bem embaixo do quadro que comprei em Cuzco, após percorrer a trilha inca com ar rarefeito sob meus pés. Ali é possível depositar todo o peso da humanidade que não sei se carregamos mais sobre o ombro no lado direito do corpo ou do seu lado esquerdo, dentro desse músculo involuntário que sempre pulsa, por mais desesperançosos estejamos. No centro do recinto, bordado pelo meu tio mais querido, um grande tapete de tapeçaria estava posto no aguardo de arroubos de desejos vorazes e explícitos.
Claro, um bom observador notaria que a porta estava fechada, mas por um ato inconsciente. Não só estavam expostas plantas sobre o seu parapeito, como viam-se vários vasos no chão, apoiados sobre uma torta táboa de madeira. E para dar um toque mais sutil e despretencioso, entre eles podiam ser vistas várias flores esparramadas ao acaso, avisando que a vida é breve, é breve como a existência das pétalas, mas igualmente frágil se soubermos fazer a correta avaliação comparativa. As plantinhas dos vasos se resignavam a esperar que a água da chuva rara do sertão saciassem sua sede de vida, mas estavam alí dispostas, bem no fundo, aguardando a aparição de uma mão generosa, de uma mão amiga, amorosa. A residente dizia-se desesperançosa, mas os cuidados ou descuidos com a sua moradia, em atos-falhos, denunciam que o seu discurso não estava assim tão percentualmente assegurado.
Sim, o peixe me invadiu antes que eu abrisse a porta ao convidá-lo a escalar os sete degraus da entrada. Ele foi manso, mas determinado. Mandou uma espécie de Hermes ou Exu, não estou segura, a enviar poesia com a insinuação de que desejava conhecer o seu interior. Mas depois, mudou de estratégia e foi direto: atravessou a janela sem que eu me apercebesse, estraçalhou meus medos e arremessou meu espanto para ao alto. Como isso se deu, eu não sei, não tenho ideia, sequer suponho. Só sei que, quando dei por mim, ele estava em minha cama, já sob o meu edredon mais acolchoado com estampas semelhentes em seus dois lados (aquele de fundo azul com flores amarelas e avesso com fundo amarelo e sob flores azuis), em perfeita simetria a anunciar que a vida pode ser equilibrada e calma. E o maior dos espantos é que ele estava nu, oferecia-se a mim sem escamas, sem guelras, sem dentes afiados de piranha, sem eletricidade no corpo, pois a eletricidade que ele gera e fornece é de domínio público e sem qualquer cobrança é constituída por matéria desconhecida da física quântica. Em pouco anos, ele entrou pela janela e colocou dois girinos em meu virgem ventre e esse tem sido o cardume em maior risco de extinção sobre o qual já li ou ouvi falar, que senti na minha epiderme já idosa e que os meus olhos arregalados já vislumbraram.
Entrou em minha casa um peixe que trouxe mais do que a água doce, que nos mantém hidratados e saciados daquela salgada que mantém o nosso alimento limpo e agradável ao paladar. Entrou trazendo rio, mar e nos fez navegar até esse céu que nos habita há quase quatro décadas.

3 comentários:

  1. Lindo texto, lindas emoções transborando através de suas palavras. Parabéns, Verinha e Paulo por seu amor,sua união. Que está fagulha divinal siga aquecendo seus corações entrelaçados. 💘

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  2. Que linda maneira de celebrar o casamento do vocês, Vera, feito de puro amor.

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