CRUZANDO CAMINHOS - Intertextualidade (Faróis), (Três Intrusos), (Intertextualidade, uma espécie de homenagem.)

INTERTEXTUALIDADE - UMA ESPÉCIE DE HOMENAGEM 

Ontem, na Livraria Cultura, eu tive o prazer de falar poesia no lançamento do livro do filho de Luciana Castro, professora do IFBA. Poderia ter escolhido poemas infantis  de autores como Vinícius de Moraes, Ferreira Gullar, Roseana Murray ou José Paulo Paes, mas preferi homenagear a minha colega. Aquela mãe reconhece, incentiva e divulga os talentos do filho. Ele, João Felipe, muito compenetrado nos seus dez anos, tocou guitarra, cantou em português e inglês, leu versos do seu livro Sussurrador de Poesias, deu entrevista e escreveu autógrafos afetuosos.

Apresentei um dos exemplos de intertextualidade de que mais gosto por diversas razões. O poema OU ISTO OU AQUILO de Cecília Meireles é bastante conhecido, mas pouco se sabe daquele escrito por Ronaldo Ribeiro Jacobina, de título É ISTO E É AQUILO. O livro CANTIGAS PARA NINAR CECÍLIA E POEMAS PARA ACORDAR GENTE GRANDE é uma bela homenagem à autora de Romanceiro da Inconfidência. Além disso, Jacobina é um médico e professor contemporâneo nosso que em seu poema menciona a ludicidade na educação - tema da dissertação de mestrado de Luciana - e rompe com uma das bases da lógica aristotélica.
A lógica formal admite o princípio do 3o. excluído, o que significa dizer que uma proposição ou é verdadeira ou é falsa, não havendo uma terceira possibilidade. Ao admitir o terceiro incluído, Ronaldo não só reafirma os versos de Cecília como os atualiza. Embora não possamos negar a importância dos estudos científicos,  a cada dia, temos maior consciência dos seus limites em abarcar a complexidade da realidade física, dos fenômenos sociais e da subjetividade de cada indivíduo em suas amplas dimensões. Nas palavras do poeta, não há antagonismos entre as operações lógicas de conjunção e disjunção, portanto É ISTO E É AQUILO e É ISTO OU É AQUILO são duas proposições verdadeiras e não contraditórias. Confirme lendo as  poesias no final dessa postagem.

Um dos exemplos clássicos de intertextualidade são os poemas baseados na CANÇÃO DO EXÍLIO. Vários autores como Drummond, Osvald de Andrade, Murilo Mendes, Cassiano Ricardo, Jô Soares, Casimiro de Abreu e Mário Quintana fizeram textos a partir dela. Além dos poemas, há também o exemplo de uma canção de Chico Buarque e Antônio Carlos Jobim. As criações que dialogam com o poema de Gonçalves Dias podem ser lidas no endereço:
http://www.recantodasletras.com.br/teorialiteraria/466791

A experiência, o livro de Ronaldo Jacobina e a leitura de alguns textos, me levaram a concluir que a definição mais simples e pessoal que posso dar ao recurso da intertextualidade resume-se na palavra homenagem.

OU ISTO OU AQUILO
                              Cecília Meireles

Ou se tem chuva, e não se tem sol
Ou se tem sol, e não se tem chuva!

Ou se calça a luva e não se põe o anel,
Ou se põe o anel, e não se calça a luva!

Quem sobe nos ares, não fica no chão,
Quem fica no chão, não sobe nos ares.

É uma grande pena que não se possa
Estar ao mesmo tempo nos dois lugares!

Ou guardo o dinheiro e não compro o doce,
Ou compro o doce e gasto o dinheiro.

Ou isto ou aquilo: ou isto ou aquilo...
E vivo escolhendo o dia inteiro!

Não sei se brinco, não sei se estudo,
Se saio correndo ou fico tranquilo.

Mas não consegui entender ainda
Qual é melhor: se é isto ou aquilo.


É ISTO E É AQUILO
                              Ronaldo Ribeiro Jacobina

Às vezes, se tem chuva e sol, sol e chuva.
É o casamento da raposa, aquela das uvas.

Às vezes, a gente está, sem estar, nos lugares.
Há quem, sem sair do chão, viva nos ares.

Vênus, estrela da manhã, arde
Também como estrela da tarde.

Não sei se brinco ou se estudo. Ora bolas!
Aprender brincando é minha escola.

Mestre não é só quem sabe, mas quem procura.
Quantas vezes a lucidez está na loucura?!

E quando a pergunta é resposta
E a resposta é pergunta?

Sem ser igual, pode ser isto e ser aquilo?
Insisto nisto: pode ser aquilo e ser isto?

Dá um nó no juízo
Quando é isto e é aquilo.

É isto e aquilo, aquilo e isto.
Antes que eu pire, desisto.
Com o terceiro incluído, acabo os dísticos.


TRÊS INTRUSOS
Vera Passos




EVANGELHO SEGUNDO AS MÃES

Samuca

god god god
um dia disse à minha mãe
que deus em inglês
parecia com o cão:
dog dog dog
ela me ameaçou com apocalipses
e não se falou mais nisso.


As letras gostam de saltitar dentro de mim. E nos momentos mais inoportunos... Como quando estou na paz dos seus braços, admirando o seu talento para o amor: o deslizar do seu toque sensível, o silêncio de quem está imerso em ritual sagrado, a criatividade inesperada dos gestos, o ritmo lento que a minha cabeça exige para que o meu corpo saboreie o delicioso banquete servido.
A mãe é a primeira intrusa a ser dispensada da nossa festa. Ela está sempre impondo a sua presença, insistindo em enviar a antiga mensagem de repressão da minha sexualidade, do prazer na entrega e gozo partilhados. Mais tarde, sob a simetria de “ds” e “gs”, me faço uma maliciosa pergunta: qual sentimento devo ter pelas mulheres que passaram por suas mãos, sentiram seu coração e respiração mudarem abruptamente de pulsação, viveram toda a satisfação que seu desejo pode demonstrar? O “dog” me diz: a RAIVA. Raiva de saber que não fui a única a atraí-lo e fazê-lo esmerar-se na arte de amar. GRATIDÃO, retruca o “god” em mim. Imensa gratidão por imaginar que elas possam ter contribuído para aperfeiçoar os seus talentos inatos de amante.
Desisto de chegar a uma síntese das minhas emoções tão contraditórias e invadidas por intrusos em momento tão particular e íntimo. Informo a ele que acabo de ter a idéia de lhe mandar uma pequena mensagem. Ela não explica,  apenas desnuda os meus sentimentos.




FAROL



O amor, quando está vivo, é uma espécie de pássaro. Grita, gesticula, move o pescoço para vários lados ao mesmo tempo. E sem pedir autorização. Um dia, você acorda. Dentro do seu corpo, agora lar propício para o pássaro, nota o bater de asas. Sente a respiração curta e rápida. Flagra um estranho desejo de alturas. O pássaro, que é apenas o amor vivo, desconcerta suas crenças de pessoa sem asas. Autoriza suas caminhadas pela noite, ao redor de cordilheiras e nuvens.
(Eliana Mara Chiossi)


OUTROS FARÓIS


Meu corpo já foi o lar propício para o filho que nasceu do amor dentro de mim. Minha respiração já foi curta e rápida para permitir que ele aspirasse o seu primeiro sopro de ar. Com passar dos anos, seus gritos e gestos já não sentem a necessidade da minha autorização. Esse ser gerado de uma comunhão, desconcerta nossas crenças mais enraizadas na terra. Sentindo temor das alturas, peço à luz que o fez perfeito, belo e inteligente, que faróis mais seguros se juntem a mim como seus guias e o encorajem ao flagrar estranhos desejos, para que possa voar sereno e confiante pelas noites da vida.

(Vera Passos)