Com que pincel?
(Vera Passos)
O pincel
com que pinto os meus dias tem a propriedade, às vezes mágica e muitas vezes
perversa, de derramar potes de cores que saem impregnando ambientes diversos da
minha vida. O maior estrago dessa sua característica quase intrínseca é
que essa avalanche não tem como resultado a paz representada pela mistura de
todos os espectros da luz.
O pincel
é mágico quando, muito além das esquinas asfálticas e esburacadas dessa
cidade, onde grávidas vasculham sacos de lixo como se a escassez fosse a lei do
universo, nuances das delicadas marcas de primavera acessam os meus olhos,
nesse eterno país do Verão. E extremamente perverso nas horas
em que o pó do dióxido de carbono ofusca os variados matizes do arco–íris do
livre-arbítrio espelhado em minhas pupilas; e o que eram avenidas de vale,
ladeiras, ruelas, becos e ruas de amplos destinos se estreitam em um
longo túnel escuro e abafado, no qual a terra, em luta com a gravidade,
derrama-se em lágrimas pelas rachaduras de paredes úmidas. É quando esqueço que
sou um fruto único gerado da ligação misteriosa entre os pais celestiais,
gigantes sempre ternos e inquebrantáveis na crença de que serei um dia, uma
filha capaz de transmutar a dor em um equilíbrio de prazer no vai e vem dos
movimentos galopantes do agora a se transformarem em presentes, logo
amassados pelo tempo. Presentes que podemos receber, tanto com os olhos de
crianças afortunadas em épocas natalinas como com o temor de quem tem a
consciência da possibilidade de abrir um cartão de Ano Novo, repleto de Antrax
em tempos de terrorismo insano.
Menina
estabanada que ainda sou, não aprendi a limpar as paletas,
evitar as misturas indesejadas ou definir com firmeza que a harmonia deve ser o
tom primordial a se espalhar por forte desejo e determinação daquela que é, afinal,
a grande pintora do quadro. Esta criatura que não terá tempo sequer de
assiná-lo ou explicar sua inata falta de talento para a arte do existir,
quando, por um sopro inesperado, tal qual o gorro, o avental, a espátula e o
cavalete, ela passar a ser mais um entre tantos objetos inertes pelo
chão.
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