sábado, 8 de novembro de 2014

A BENÇA, MEU TIO?



           Um homem cujo nome é  Vicente Cunha Passos aparentemente seria meu irmão, no entanto, é meu tio e padrinho. É provável que ele tenha sido o irmão mais querido do meu pai e o maior desafeto de minha mãe. Eram todos primos e neles corre uma herança genética e comportamental que os põe propensos às mesmas doenças. Tio Vicente foi o motivo ou a desculpa para inúmera brigas entre meus pais. Eu, como filha primogênita, herdeira da mesma carga genética, a preferida de minha mãe e a menos amada por meu pai, fui um tipo de Exu ou Hermes, mas só levava notícias más entre mamãe e titio. Ela saia comigo em um táxi para os seguir o meu pai e ver se estava em algum bordel com o seu irmão, cuja fama de boêmio e mulherengo era bem conhecida na nossa cidade. Voltávamos sempre constatando que os dois estavam juntos em um bar, talvez matando as saudades de irmãos, cumprindo a determinação divina de que foram escolhidos e escolheram partilhar pais e infância. Os dois, com temperamentos e comportamentos bem distintos, deveriam ter lições contrárias a aprender em vida.  Acredito eu que a lição de meu pai era se permitir ser feliz, abrir-se para a vida, sentir-se merecedor de dádivas materiais e imateriais.  Apesar de machista,  precisava se tornar mais forte para lidar com a mulher que tanto amava e o tentava controlar. Ela por seu turno, tentava ajudá-lo a vencer um distúrbio psíquico grave.  Ao meu tio, penso que  cabia aprender a ser mais moderado, não exagerar na busca do prazer carnal, talvez fruto de uma tentativa de fugir de uma tristeza soterrada.




       Fui batizada por esse tio, por desígnios de Deus e para desespero de minha mãe. Eles haviam convidado, provavelmente por determinação dela, seu tio Dário Cunha e sua esposa Elvira para serem meus padrinhos em Santa Bárbara. Naquela manhã, no entanto, seu tio não compareceu à cerimônia por razões que desconheço. No momento de ser concretizado o batismo, na falta de opção e provavelmente, sob pressão do meu pai, fui batizada por tio Vicente e, talvez, por sua irmã com a qual não convivi. Escondido o episódio, durante toda a minha vida infância e juventude, pedi a benção ao tio Dário, que era uma espécie de mediador nos conflitos dos Cunha. 
       
        Por volta dos meus 14 anos, em uma das vindas de Minas Gerais do meu tio Meinardo Passos ou do tio Joaquim, meu pai parou sua rural, embaixo de uma mangueira do Hotel Solar Santana, propriedade da família, e, chorando, revelou aos seus 3 filhos que possuía uma irmã de nome Lourdes, viva e morando em Santa Bárbara. Não posso revelar os sentimentos ou os pensamentos dos meus irmãos, mas eu fiquei chocada e identificada com o sofrimento e fraqueza daquele homem em ter vivido tantos anos afastado de sua única irmã e ter sido conivente na decisão de boicotar uma possível relação de amor entre ela e seus filhos.

       No início do ano de 1975, lendo um horóscopo com previsão para 76, tenho o pressentimento de que meu pai morreria no mês de agosto daquele ano. Manifesto isso para as minhas amigas que tentam me convencer do contrário.  Em agosto, aos meus 17 anos, como previ, morre o meu pai. Ele se queima vivo em seu maior gesto de desespero, coragem e solidão. Em consequência disso e de todo o sentimento gerado por sua ação, concluo que será insuportável a convivência diária entre minha mãe e eu. já consciente de seu autoritarismo e desequilíbrio. Certamente, ela viria morar em Salvador e eu não suportaria seus desmandos e desrespeito a mim. A herança deixada fica totalmente controlada pela mãe que tem agora a tarefa de gerir a família sem a presença de seu marido, mas não é capaz de demonstrar sua insegurança e sofrimento e se nega a permitir qualquer liberdade financeira aos filhos. Não consigo aguardar os meus 21 anos para receber a parte do quinhão que me era devida, comprar a minha alforria. Então, a ameaço de entrar com um processo e de esperar o seu desfecho, trancando o curso de Arquitetura na UFBa, voltando para Feira de Santana e procurando viver de aulas particulares de PortuguêsInglês e Matemática. Não sei se blefei ou se teria a coragem de enfrentar minha própria mãe em um tribunal. Pelo fato de nos parecermos fisicamente, talvez tivesse a sensação de estar lutando contra mim mesma. Ela cede, decide me conceder uma parte do fruto dos rendimentos de alugueis, juros bancários, 3 fazendas e de um dos maiores hotéis da cidade. Ceder não é a palavra mais acertada, porque ela determinou a forma com que eu receberia o dinheiro e o valor devido. Assim, todos os meses entre meus 18 e 21 anos, eu viajei para Feira e fui à casa do seu tio Dário, onde pedia a sua benção, ele reclamava de minha rebeldia e me dava indiretas sobre o trabalho que lhe dava ao ser forçado a abrir sua carteira e me emprestar o valor acertado.

     Anos mais tarde, descubro que meu pai, assim como meu tio Vicente, teve amantes, que o meu tio Dário não havia me batizado e era pelo meu tio Vicente que eu precisva ser abençoada. Fiquei aterrorizada ao saber que o meu padrinho era aquele a quem eu tantas vezes havia procurado para lhe repetir, chorando, mensagens agressivas determinando que se afastasse da família do seu irmão! Nessa situação, até hoje não fui capaz de tratá-lo como afilhada, nem nele vi nenhum gesto de quem tivesse a responsabilidade de ser meu pai substituto. 


       Em 2012, quando eu e meu companheiro resolvemos comemorar bodas de prata, nos casando no civil, precisei procurar o meu batistério e me dei conta de que não sabia quem era a minha madrinha. A essa altura, tio Dário e tia Elvira já haviam morrido. A busca da revelação foi vã, porque o documento havia sido extraviado em Santa Bárbara, no processo de vinda para o Bispado de Feira. Casei-me muito triste com esse questionamento e a constatação de que meu pai não poderia participar da cerimônia e minha mãe não queria nela estar. Porém, continuei a investigação indo à casa de tio Vicente e tia Aidil, para saber deles quem era a minha madrinha. Bastante envelhecido e sofrendo do mal de Alzheimer, ele não me reconheceu e falou: "parece mesmo que eu batizei um filho de Milton". Depois de várias buscas sem sucesso, em um momento de contato telefônico com minha mãe, eu lhe pergunto, muito calma e estrategicamente, que me diga quem era a minha madrinha. Ela me diz ter sido "uma pretinha que trabalhava na casa de minha avó paterna e que já deveria estar morta." Concluo que, se ela era mais nova do que minha mãe, havia grandes possibilidade de que eu a encontrasse para montar mais um quebra-cabeças do meu passado. Eu conto a suas irmãs, minhas tias Ovídia e Maria das Graças,  que não acreditam nessa versão, mas continuam a busca a meu pedido. Em um outro telefonema, eu digo a minha mãe que não localizei essa mulher e ela me diz que se enganou e acha que foi mesmo tia Lourdes, já morta. Então, para desvendar o meu passado, dar mais um passo rumo à possível verdade do que fui, para o entendimento do que sou e decisão do que quero ser, já marquei uma viagem até Santa Bárbara, onde, poderei, ao menos falar com a sua filha, aquela que cuidou da minha tia até a sua morte, rever as fachadas das casas vizinhas, onde meus pais e avós moraram  e visitar a igreja onde fui batizada. 

       Termino esse longo relato, me sentindo mais limpa e leve e declarando ao meu primo Vicentinho, com o qual não convivi e que se tornou meu amigo no facebook: "De alma lavada, sinto tristeza pelos primos que não fomos, fico feliz pelo pouco contato e carinho que foi possível existir com o seu irmão mais velho, Roberto Passos, e amo todos pelos laços que ainda poderemos desenvolver."


Nenhum comentário:

Postar um comentário

Sem muitos gerúndios, longas esperas e musiquinhas, o seu comentário é, de fato, importante para nós! Fique calmo, pois não vamos desligar a nossa ligação virtual, ok?