O QUE HÁ DE TRANSFOBIA EM MIM?
Escrevo esse texto porque eu* fui taxada de transfóbica quando
fiz um comentário sobre uma matéria veiculada na imprensa. Isso se deu em um
grupo de artistas, que possivelmente poderia ser considerado um grupo sem tantas
censuras quanto os demais. Ledo engano se isso passou pela sua cabeça!
A matéria a que me refiro era um vídeo, divulgado por Carlos
Bolsonaro em que uma atleta internacional dizia não ser justo que atletas transexuais
concorressem com atletas cisgênero, ultrapassando recordes duramente
conquistados por essas mulheres. A justificativa era de que elas tinham
estruturas corporais mais preparadas para as competições e é sabido que alguém que
nasceu com uma estrutura física de um corpo masculino, mesmo que não se
identifique com aquilo que social e equivocadamente é tratado/taxado como um
corpo masculino, está mais capacitade para a prova, logo, sai com vantagem
sobre as demais competidoras.
Vejam, estou longe de ter qualquer pessoa dessa família como
referência, sequer antiintelectualmente, no entanto, não sou do tipo que diz
não a tudo o que vem da boca dos ignorantes. Professora de Matemática e
Linguagem que sou, sei bem diferenciar inteligência de ignorância e ambas de
maulcaratismo. Sou uma daquelas pessoas que busca ter uma opinião própria sobre
qualquer declaração, independentemente de quem o noticia ou, pior ainda, a
divulga. Mas essa mensagem me foi enviada através da cópia de um link desse
citado “cidadão”. E por falar em inteligência, não sou burra o suficiente para
não ter plena consciência de que o objetivo da postagem era desmerecer as
pessoas trans. Tenho a intenção consciente e pessoal de analisar o que ouço e
extrair disso uma ideia própria, de que não preciso viver uma situação para
imaginar o que sentiria se passasse por ela, embora não possa saber precisar o
que eu faria e, principalmente o que pensou e sentiu quem a viveu em seus
corpos e almas. Não preciso estar em uma paisagem retratada em um cartão postal
(sim, sou da época dos cartões postais e mesmo depois que muitos se esqueceram
deles, continuem os enviando quando viajava) para declarar: “Esse lugar é
bonito, quero ir conhecê-lo”. Obviamente essa situação é muito mais simples e
meramente ilustrativa daquela que é o tópico que desencadeou esse texto. Sou
alguém que nasceu em uma família ista: racista e machista entre outras
tantas “qualidades”. E obviamente homofóbicas, quando o termo sequer existia.
Mas como tenho alma rebelde, deixei essa família ainda menor de idade para
viver o mundo segundo as minhas próprias regras e desde então tenho feito um
exercício constante de empatia por pessoas vítimas dos mais variados
preconceitos (gordofobia, capacitismo,
xenofobia etc). Isso se deu há cerca de 46 anos! E quando fui acusada de ter
uma transfóbia, tinha 63 anos e, há quase 10 anos, tinha escrito textos
semelhantes, como os de títulos “O que há de racismo em mim”, “O que há de
homofobia em mim.” Isso porque, obviamente, o fato dos padrinhos que escolhi
para a minha única filha serem um casal homossexual com um dos parceiros
negros, não significa que não haja situações em que eu me flagre com
pensamentos ou atitudes racistas e/ou homofóbicas.
Até hoje me pergunto: “Por que a maioria de seus amigos são
heterossexuais?” “Por que os negros são expressiva minoria dos seus amigos”.
“Porque você, que teve tantos namorados, nunca beijou um homem negro”? Tenho
alguns palpites que não estão no campo da biologia mas da cultura.
É preciso fazer um parêntese para dizer que até hoje é preciso
colocar os meus neurônios para funcionarem quando vou explicar o significado da
sopa de letras que é a sigla LGBTQIA+, eu que me sentia bem instalada no bando
dos S (simpatizantes) quando a sigla para designar essas pessoas era LGBTS,
especialmente porque ela vem sempre aumentando, como um arco-íris e entendo
isso. Há pouco tempo acrescentou-se mais duas letras ao termo que ficou sendo LGBTQIAPN+
e justamente por ter feito o curso ao qual me refiro, não foi preciso ler para
saber que o P se referia a pansexuais e
o N a não-bináries.
A minha sorte é que, como sou uma pessoa que gosta de
aprender, ao me aposentar, depois de ter me formado em Bacharelado e
Licenciatura em Matemática, em Letras e fazer 2 pós-graduações, voltei para a
UFBA fazendo Bacharelado Interdisciplinar em Artes, que abandonei há um ano
porque estava sendo ameaçada de jubilamento por ficar fazendo disciplinas fora
da grade curricular (isso que você leu, mesmo que o termo tenha mudado, há “grade”
curricular no BI que está longe de ser interdisciplinar, mas isso é assunto
para outro texto). Agora tive que aprender mais 2 letras, mas como fiz a disciplina Oficina de Leitura e Escrita II, com a
professora Isadora Machado, e fiz questão de fazer um trabalho sobre o grupo de
pessoas sobre as quais eu menos sabia, optei por estudar não, trabalhadores,
indígenas ou negres, mas aqueles que sofrem preconceitos por razões dessa
ordem. É imprescindível esclarecer que eu já tinha quase 60 anos quando tive
contato com uma mulher trans e isso se deu justamente na minha equipe de
trabalho. Como o tema me despertou interesse, depois disso frequentei aulas de
um curso sobre ema ministrado por um homem trans.
Acho que é melhor parar por aqui, não porque não haja outras coisas a serem ditas, mas porque dado ao seu tamanho, esse texto não será lido por quase ninguém, considerando que estamos na época dos clicks e likes em news virtuais que, na maioria das vezes, são fakes. Quanto ao tema que gerou essa acusação sobre mim por alguém que provavelmente sequer sabia o meu nome, foi a guerra entre nadadoras femininas e transsexuais. Apenas tendo lido um pouco sobre a alegação de ambas as partes, mesmo sabendo do tratamento de que me fez concordar sobre a alegação da atleta, considero que a contra argumentação de que as atletas trans passaram por tratamentos hormonais que buscam neutralizar os efeitos dos hormônios em seus corpos, não me parece justificar a colocação de ambas as categorias em um mesmo competição, visto que o fato de que em grande parte de suas vidas as atletas trans tinham corpos masculinos ou femininos, o que não se resume à genitália. Estarei eu certa ou errada? Não sei. Uma das teorias científicas do nosso tempo diz que não? O que outras dirão no futuro. Também não sei. Confesso que não li nenhum artigo científico sobre o assunto. Por isso mesmo, pedi ao meu interlocutor que se dizia conhecedor, que me instruísse nesse sentido, mas ele apenas continuou me destratando. A assertiva " a ciência prova não é o bastante para mim. Afinal, a ciência é processo e está sujeita a contingências do seu tempo e a influências de interesses econô,icos e políticos dele. Por fim, quero dizer que se alguém que leu esse texto quiser ler o trabalho da equipe de que participei sobre o que dizem os dicionários – preconceituosos em sua maioria - acerca dos termos “travesti”, “homossexual”, heterossexual”, “transsexual”, “bissexual”, “assexual” etc, pode entrar em contato comigo que enviarei o pdf dele. O último ponto é declarar que terei de voltar a revisar mais cuidadosamente este texto porque o software que utilizei para digitá-lo marcou como erro todos os termos escritos com o “e” e não com binarismo “a” e “o”!
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Meu lugar de fala, digo, de escrita, é de uma
mulher cis.