A crônica abaixo foi selecionada através do Concurso Adélia Prado, promovido pela Editora Assis. Em fevereiro, houve o lançamento da coletânea Veredas Literárias, na cidade de Uberlândia-MG, com a participação de alguns dos autores publicados.
MORTES COTIDIANAS
Vera Passos
A gente tem de morrer tantas vezes nessa vida, que precisamos ir preparando a morte, talvez, definitiva. O nascimento é a primeira dessas mortes, quando deixamos a bolha escurinha, quente e úmida onde estamos em total sintonia com aquele ser que nos gerou e acolhe em uma simbiose perfeita, do qual extraímos tudo de que necessitamos. O sopro inicial é um grande esforço, mas o fazemos em nome da vida a nos que nos aguarda e das sucessivas mortes que a acompanham. È com tristeza e choro que manifestamos essa morte sempre prematura. Morremos ao sair da infância, o que tem acontecido cada vez mais cedo, devido ao apelo exaustivo da sociedade midiática e consumista que impõem às nossas crianças necessidades vãs, as tornando adultos mirins para o quê não estão de modo algum preparadas. Assim é que se tornam mães sem sequer terem ensaiado as brincadeiras com suas pequenas bonecas. Na adolescência, é toda a nossa identidade que morre e buscamos desesperados outra que nos caiba. Rabiscamos assinaturas possíveis e estilos de nos vestir e nos portar em público que nos definam. Ora nos escondemos, ora nos mostramos escandalosa e agressivamente.
Mais tarde, em novos rituais como ao entrar para a vida profissional e ao casar, vivemos outras diferentes mortes. Quando somos mães, morremos ao ver sair de nós aqueles seres que mantínhamos seguros dentro dos nossos corpos e agora se lançam no mundo em suas próprias descobertas e riscos. Fenecemos quando findam os nossos relacionamentos, e constatamos, que se apagou a chama do foi uma grande paixão.
Embora, ao nascer tivéssemos como destino o envelhecimento e a morte, a constatação do caminhar para o fim, no espelho nosso de cada dia, é a mais difícil das mortes enfrentadas. Dela fugimos desesperados! Porém ela teima em se expor nos espelhos que são os nossos antigos, e agora também velhos, amigos. Vemos irem-se parentes e amigos, enquanto seguimos nessa trilha misteriosa e tão imprevisível que é a vida. São muitas, e tantas, essas mortes... Às vezes a vida nos prende em armadilhas traiçoeiras a ponto de querermos, voluntária e estranhamente, morrer de fato e chegarmos a atentar contra a própria vida. Em estado de depressão, nos sabotamos e matamos vários dos nossos dias. É Tanatos que nos faz navegar pelo inconsciente, embora a vida seja cheia de possibilidades, tenhamos diversos talentos e lá fora brilhe um sol fulgurante sob mar azul sem fim.
Enfim, poderia continuar discorrendo sobre uma infinidade de mortes. Mas por me sentir muito viva agora, planejo a cerimônia que registrará a minha morte. Não quero carpideiras, mas os sons de leve música e algum choro sincero dos que sentirão a minha falta. O ritual do velório é muito mórbido, embora certo luto seja necessário para que os meus filhos reflitam o que significa para cada um deles a perda de sua mãe. Para internalizarem como querem guardar essa memória. Em um gesto solidário, ecológico e de celebração à vida, já doei os meus órgãos. Que minhas cinzas sejam jogadas em campo florido, enquanto o ar conduz belos poemas e cantos sobre a arte de viver. Viver em plenitude, saboreando os bons momentos, aprendendo com os maus e partilhando cada um deles.
E que venham outras vidas e suas respectivas mortes. Se elas existirem!